Rotos os laços do mundo, Entre palavras truncadas, Que bem mostram d'alma o fundo, Orfãs em pranto banhadas Me entrega o pae moribundo:
«Filhas, já o espirito cáe; Já o sangue gela, e cança; Meus frios olhos cerrae, Ahi tendes a vossa herança, Abi tendes o irmão, e o pae:>>
Eu, entretanto, suspiro; Sobre o pranteado leito D'entre os braços o não tiro; Quebrou junto do meu peito O seu ultimo suspiro.
Senhor, de meios sou falto; Mas do pae, que aos ceos subia, Em nada aos preceitos falto; Debaixo da campa fria
As cinzas me fallam alto:
Váe com mão egual cortado, Entre os irmãos infelizes, Pão com lagrimas ganhado, Que, sem os fazer felizes, Me deixa a mim desgraçado.
Se nos officios se approva Haver augmento e progresso, Não haja tarifa nova;
Não seja o meu duro accesso Da cadeira para a cova:
Antes que me adorne a fronte Barrete felpudo e denso, E ao sol no alpendre do Monte, Esfregando o crespo lenço, Casos do meu tempo conte:
Antes que as forças se vão, E que eu viva agasalhado, Boldrié sobre o roupão, N'uma botica sentado, Vendo jogar o gamão:
Antes que entre vis sequazes, Sendo victima irrisoria De mil galopins vorazes, Em logar da palmatoria, Dê c'o bordão nos rapazes:
Tende do do meu lamento, Pois que benigno o escutaes; A piedade, e o acolhimento São dos corações reaes O mais honroso ornamento:
Pobres, chorosos irmãos, Que em mim tem debil columną, Não ergam desejos vãos; Vejam na minha fortuna A obra das vossas mãos:
Proteger a causa honesta, Ter dos tristes dó profundo, Trocar-lhe a sorte funesta, Senhor, a gloria do mundo, Ou a não ha, ou é esta.
Mas já longa narração Váe levando longe a méta; Já parece, e com razão, Mais que papel de poeta, Ou testamento ou sermão.
Minha dor me fez fallar; Fiz queixas assaz compridas; Dignae-vos de desculpar, Que mostre o enfermo as feridas A quem lhas póde sarar.
Memorial offerecido ao visconde de Villa-nova da Cerveira, depois marquez de Ponte-de-Lima
Se não desprezaes, senhor, As valias que hoje levo, Que são lagrimas e dor, A supplicar-vos me atrevo Queiraes ser meu protector.
Minhas supplicas não tem Das leis o direito austero; Apresentar-se hoje vem, Não ao ministro severo, Sómente ao homem de bem:
Vão sobre o dó e a verdade Meus singelos rogos feitos; É meu juiz a piedade, Vem fundados meus direitos Sobre as leis da humanidade.
Sá de Miranda, em quem vi Que de Jove as louras filhas Abrigára junto a si,
E em quem das doces quintilhas Sómente a rima aprendi;
Quiz que um dia o seu bom rei Perca com elle meia hora: Menos tempo pedirei; E alguns instantes agora Commigo, senhor, perdei.
De mil trabalhos cortado, E de longos annos cheio, Pae tão velho, como honrado, Pôr sobre os meus hombros veiu Da pobre casa o cuidado.
« Acceita, ó filho, me diz, Este peso triste e honroso; Já ao ceo mil votos fiz, Que possas ser tão ditoso, Quanto eu fui sempre infeliz:
«Passei meus cançados dias Sobre os mais filhos chorando; Entretanto tu crescias;
Já de longe esperanças dando, Que de pae lhes servirias:
«Na longa desgraça minha Ternamente os abraçava; Em doce paz os mantinha; E muitas vezes lhes dava Consolações, que eu não tinha:
« Filhos nascidos em dor, Nascidos para infelizes, Sou vosso pae só no amor; Eu quiz deixar-vos felizes, Ninguem acertou peior:
«Mas d'esta dor importuna Sómente os fados culpae; Quiz ser a vossa columna; Intental-o é de bom pae, Sel-o, ou não, é da fortuna:
«Triste velhice e pobreza Tiram-me a obra da mão; Toma tu, ó filho, a empreza, Toma a honrosa obrigação, Que eu te ponho, e a natureza:
«Queira o ceo que certas faças As antigas esperanças
Do triste velho que abraças; Que não deixa mais heranças Que honra inutil e desgraças. »
A triste falla acabou, Que nós em silencio ouvimos; A todos nos abraçou, Doces lagrimas lhe vimos, Com que a natureza honrou.
Senhor, se a fiel pintura, Com que a minha fraca mão Esta scena vos figura, Move em vosso coração Sentimentos de ternura;
Animae o justo ardor, Em que se accende o meu peito; Fazei que eu possa, senhor, Ser do paternal preceito
Um fiel executor.
Se eu dar cumprimento quiz A quanto o bom pae dispunha; Se em fim, quanto pude, fiz, Sêde vós a testimunha, Como fostes o juiz.
Moças irmãs desvalidas, A quem dou pobre sustento, Foram por vós deferidas; Vivem em santo convento Dignamente recolhidas.
Pão com lagrimas ganhado Lhe adoça a dura pobreza; Por mim ao meio cortado Lhe vae da singela mesa Com sãos desejos mandado.
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